terça-feira, 14 de maio de 2013

“QUEM NÃO DEVE NÃO TEME!” SERÁ?

“Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!”
Isaías 5.20



“Acusação” é o nome de um filme de 1995, dirigido por Mick Jackson. Ele narra um caso ocorrido nos Estados Unidos da década de 1980, onde uma família proprietária de uma escola infantil foi acusada de abuso sexual contra vários alunos. Como é comum em eventos dessa natureza, a partir da denúncia de uma mãe, vários casos vieram à tona. Toda a família McMartin foi presa, desde um jovem rapaz até senhoras idosas. O caso se tornou um escândalo nacional, a família, alvo de uma população indignada, e os acusados permaneceram presos durante o julgamento que se arrastou por anos. Em todo o tempo, a mídia fuzilava a tal família pedófila.¹

Ocorre, no entanto, que a família McMartin não era pedófila. Ao final do julgamento, todos eles foram inocentados. O filme conta sobre como as falsas provas foram levantadas, inclusive através do trabalho de uma psicóloga que induzia as crianças a inventar histórias de abuso. Ficou comprovado pela Justiça que as provas e os testemunhos eram falsos, e que, inclusive, a promotoria decidiu fazer vistas grossas quando percebeu que as evidências eram contraditórias. A família McMartin foi acusada injustamente. Eram, na verdade, pessoas amáveis consagradas à educação infantil. Todas elas, inocentes!

A reflexão que esse filme deveria nos causar é quanto à gravidade e o perigo da opinião pública julgar e condenar pessoas, simplesmente porque a imprensa (que visa lucro) garante que todos os suspeitos sejam previamente julgados e condenados pelo senso comum. A família McMartin é uma demonstração de como o poder da imprensa pode provocar danos irreparáveis a um inocente por toda sua vida. Mesmo que se comprove a inocência de alguém ao final de um processo, nada fará com que sua imagem volte a ser como antes. Quem não se lembra do caso da Escola Base na capital paulista? Já se passaram quase 20 anos e as vítimas das falsas acusações pleiteiam indenizações até hoje junto à Justiça. 

É terrível imaginar que, se coisas desse tipo acontecem com pessoas inocentes, isso implica em que qualquer inocente (e isso, obviamente, me inclui) pode passar pelo “linchamento” da mídia, e não haverá compensação judicial que reverta isso, nem mesmo indenizações milionárias. 

“Quem não deve não teme”? Isso não é bem verdade! O filme norte-americano mostra, por exemplo, mulheres idosas sendo torturadas na cadeia, por carcereiras que, influenciadas pela imprensa, acreditavam estar compensando os abusos sofridos por aquelas pobres crianças. De novo: se isso pode acontecer com pessoas inocentes, qual a garantia que tenho de que eu esteja inteiramente protegido do risco de passar por uma situação semelhante?

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Teoricamente, a resposta estaria na Lei. Nascida na Revolução Francesa, a presunção de inocência é uma das mais importantes garantias do Direito. Embora a origem do “in dubio pro reo” possa ser encontrada no direito romano, especialmente por influência do Cristianismo, esse princípio se insere entre os postulados fundamentais que presidiram a reforma do sistema repressivo empreendida pela revolução liberal do século XVIII.² 
1789: "Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei". (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, artigo 9º).
1948: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 11º).
1988: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5º).
Deste princípio emergem outros de igual importância: o direito à ampla defesa, o direito de se recorrer em liberdade, o duplo grau de jurisdição, o contraditório, entre outros. Em resumo, todos esses princípios constitucionais exercem função de alicerce do sistema justo e democrático, pois no centro de todos os procedimentos judiciais o réu mantém sua integridade, sendo-lhe assegurado o devido processo legal, tornando menores os riscos de uma decisão precipitada do magistrado.³ 

O LINCHAMENTO MORAL DA SOCIEDADE

Mas, convenhamos: de que adiantam as garantias legais diante da Justiça, quando o próprio Direito (na prática) não garante a integridade da imagem da pessoa diante da sociedade? As penas impostas pelo Estado não são a única maneira de um inocente ser prejudicado. Quem tem sua imagem exposta pela mídia, pode ter certeza de uma coisa: nunca mais gozará de paz! 

Teoricamente (de novo), o princípio da presunção da inocência deveria ser aplicado também ao trabalho da imprensa. A maneira como ela se utiliza de seu poderio para noticiar crimes é criminosa. Seguindo o raciocínio das garantias constitucionais, o imputado deveria ser preservado de qualquer tipo de constrangimento, evitando que a sua imagem e sua identidade fossem divulgados durante o processo que incorre contra ele, para se evitar um dano à sua moral. 

A Lei não impede (e nem deveria impedir) a imprensa de trabalhar e noticiar os casos, mas seu trabalho deveria se concentrar em relatar os fatos, sem envolver acusados. E o Estado deveria ser o primeiro a buscar este ideal. Em 2009, quando o jogador Robinho atuava no futebol inglês, teve seu nome exposto pela imprensa inglesa (e, em seguida, a brasileira) como alguém investigado pela Justiça britânica por um caso de abuso sexual contra uma jovem de 18 anos numa boate de Leeds. Contudo, quando os jornalistas brasileiros tentaram tomar conhecimento das denúncias pelos meios oficiais, o máximo que conseguiram foi algo parecido com: "Existe, sim, a denúncia de uma agressão sexual na boate de Leeds, que está sendo investigada, mas nós não podemos revelar o nome do acusado!". Certamente a informação vazou, mas a posição oficial do Estado foi de resguardar a imagem do acusado enquanto não houvesse nada comprovado. No caso de Robinho, o inquérito nem foi aberto.

É verdade que recentemente os jornalistas no Brasil aprenderam a aplicar termos como “suspeito” ou “acusado”, ao invés de "bandido", "assassino" ou coisa pior. Isso, porém, não é suficiente para garantir os direitos constitucionais e a integridade do cidadão. Afinal, nesse país, para o senso comum, ser acusado de um delito não é em nada diferente de ser condenado.

Os McMartin tiveram a vida arruinada pela fúria de sua comunidade e de todo o país, por conta da histeria provocada pela imprensa. Depois de tantos anos expostos na mídia de forma degradante, embora inocentes, eles já não sabiam mais como lidar com a liberdade. E pior, a própria comunidade não era capaz de lidar adequadamente com a comprovação de sua inocência. Para a Justiça, inocentes; para a sociedade, eternamente culpados.

A PRAXIS CRIMINOSA DA IMPRENSA, 
DO ESTADO E DA SOCIEDADE

Durante a semana passada, a atenção de praticamente todos os veículos de comunicação no Brasil se voltou para a prisão de um célebre pastor evangélico no Rio de Janeiro, sob as acusações de lavagem de dinheiro, associação com o tráfico de drogas, estupros, abortos, e homicídios. 

Não pretendo debater a culpa/inocência do indivíduo, e nem acho que se trate de perseguição religiosa, como vi muitos evangélicos alegando. O que foi posto até aqui foi uma argumentação que combate a prática abusiva da denúncia e o excesso de exposição, como um problema generalizado, e não a defesa da inocência de uma pessoa em específico. Aliás, segundo demonstrou a imprensa (indevidamente, reforce-se), o tal pastor parece culpado até o pescoço. Contudo, por mais que seja indevida a forma como tomei conhecimento, o fato é que agora eu sei de muita coisa que eu não deveria saber, como detalhes do processo e, pior, o nome e o rosto do sujeito. Ao menos, até que o caso fosse julgado pela Justiça, a imprensa não poderia expor a imagem do acusado.

Ter direito a um julgamento público não implica em que um julgamento deva ser transformado em espetáculo público, onde o único palhaço é o acusado, devido a seus direitos não terem sido resguardados. Julgamento público é uma garantia de que ele tenha um julgamento justo. A Justiça possui os meios devidos de tornar público um julgamento, e a imprensa jamais pode ser considerada uma parceira para este fim. Os setores da imprensa que investem nisso, não passam de imprensa marrom. Não lhes cabe formar opinião sobre o imputado, ou contribuir para isso, já que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 

O texto da Lei não pode ser tratado como se fosse uma referência somente ao processo penal. Presunção da inocência é um princípio que protege o inocente de sofrer prejuízos de toda e qualquer espécie. Portanto, ele deve ser aplicado a qualquer sistema que atue contra os direitos dos cidadãos, nesse caso, a imprensa.

O que deveria chamar a atenção não são as acusações contra o pastor, ou as provas noticiadas, mas, por exemplo, o fato da TV Globo estar presente no momento da abordagem da Polícia Civil. Quem a chamou lá? Se ele é ou não culpado, disso a Justiça cuidará. A pergunta-chave é: em que a TV Globo contribuiu com a Justiça cobrindo a prisão desse homem? Na verdade, ela não estava lá pelo senso de justiça, mas pelo furo jornalístico. O furo é desproporcionalmente mais importante do que os direitos individuais do ser humano. Estamos atolados numa cultura que desconhece o caráter desses direitos conquistados através dos séculos.

O “grande público” aprecia por demais as “novelas policiais” transmitidas diariamente pelos telejornais. “Produzir notícias é o nosso negócio!”. Mas, por que razão a imprensa se comportaria eticamente, se nem mesmo o Estado mantém a compostura. Pior do que a Globo estar presente no momento da prisão, são as pessoas a serviço do Estado que a convidaram a se fazer presente. 

Seja com esse pastor, ou com qualquer outro cidadão que passar pela exposição da mídia sob o rótulo de “suspeito”, ao final, as provas podem se mostrar incoerentes, a Justiça pode declará-lo inocente, mas a consciência da sociedade não será mudada. Supondo que o pastor prove sua inocência, alguém acredita que ele teria restituída a sua imagem? É impossível! O Brasil já formou uma opinião sobre ele! A mesma TV Globo não dedicaria para a retratação a mesma quantidade de horas que dedicou à cobertura da prisão, investigações e julgamento. E nem o Delegado do caso estaria tão interessado em dar entrevistas dizendo que errou. 

Ora, ninguém duvidava que a família McMartin fosse culpada de todas aquelas terríveis acusações, mas mesmo assim provou sua inocência. E, apesar disso, sofreu todos os danos inimagináveis: física, emocional e moralmente, por conta da cobertura sensacionalista que a imprensa deu ao caso. Rubin Carter (o “Hurricane”), boxeador americano condenado à prisão perpétua em 1966, por um triplo assassinato, conseguiu provar sua inocência após 19 anos na prisão. Se até mesmo os casos transitados em julgados podem conter falhas e condenar inocentes, muito mais deveria ser o cuidado da sociedade com a imagem daqueles de quem nada se julgou.

Não se faça confusão quanto ao propósito deste artigo. Não se trata do pastor carioca, mas dos direitos civis de qualquer cidadão. Trata-se de direitos humanos! Se ele for um criminoso, que seja punido pela Justiça! Preocupa-me o descaso do Estado e da sociedade quanto à ética da denúncia. É alarmante se notar que ninguém faz o mínimo caso de que a imagem de gente ainda não condenada seja jogada na lama.

É o caso dos populares reposts de redes sociais: fotos de pessoas alegadamente procuradas pela Justiça são publicadas e repostadas incontrolavelmente. Note-se: caso se tratasse de um link que remetesse o leitor para o site da Polícia Federal, por exemplo, seria algo salutar. Mas as pessoas, sem qualquer senso de preocupação, republicam fotos dizendo que aquelas pessoas são pedófilas, espancadoras ou assassinas, sem esse vínculo com uma fonte oficial da Justiça. Mas... e se não for verdade? E se for uma brincadeira de péssimo gosto produzida por uma pessoa que não imaginava que isso repercutiria com tanta proporção? E se for uma falsa acusação proposta anonimamente por um inimigo com intenção real de se vingar? Como saber?? Quem restituirá a integridade da imagem de uma dessas pessoas expostas por todo o país através das páginas do facebook?

CONCLUSÃO

A Lei garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Mas se a imprensa faz com que as pessoas fiquem eternamente manchadas diante da sociedade, então é conclusivo que tais pessoas têm sido não só consideradas culpadas como também penalizadas de fato, e, em alguns poucos casos, a despeito de sua inocência. Carregar esse estigma pelo resto da vida pode ser pior do que cumprir uma pena estipulada por um Juiz.

Se a presunção da inocência é o princípio do Direito que garante a proteção do inocente, deveria ser também um princípio a ser defendido por todo cidadão de bem. Quem se considera boa gente deveria manifestar repúdio ao sensacionalismo de uma imprensa comprometida com “novelas policiais” que nada contribuem para a promoção da justiça.

“Amar ao próximo como a si mesmo” é um princípio nascido na Lei de Moisés, e enfatizado pelo Senhor Jesus Cristo. Ainda mais antigo que esse, é o de Confúcio, porém, em forma negativa: “Não faça aos outros, aquilo que não gostaria que lhe fizessem!” Não é tão difícil! Basta se colocar no lugar do outro, que qualquer pessoa será capaz de perceber o quão grave é o nível de tolerância que nossa sociedade desenvolveu: cada pessoa segue sua vida, sem imaginar que, um dia, poderá ser ela a bola da vez!

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Bibliografia

¹ Juliana Gonçalves. http://amostragemjor.blogspot.com.br/2008/10/resenha-sobre-o-filme-acusao.html

² Gomes Filho, Antonio Magalhães; Presunção de Inocência e Prisão Cautelar; Saraiva; 1991; São Paulo, apud João Paulo Orsini Martinelli, http://jus.com.br/revista/texto/163/presuncao-de-inocencia-e-direito-a-ampla-defesa

³ João Paulo Orsini Martinelli, http://jus.com.br/revista/texto/163/presuncao-de-inocencia-e-direito-a-ampla-defesa

5 comentários:

  1. Removi sem querer.

    Meu caro irmão Thiago, Esse texto está digno de uma matéria jornalistica. Imparcial, relevante, claro, leitura agradável, não cansativa. Fiquei ainda mais preso, até o fim, esperando o seu "link" com a teologia. Você, nesse texto, deixou claro algo que tenho ensinado bastante, que jesus, o evangelho, a bíblia, etc são a nossa reposta ao mundo. mas antes da resposta, o mundo quer ver os "argumentos", ou seja, os cálculos que demonstrem a resposta. E isso acho que você tem feito cada vez melhor.

    parabéns e continua firme nesse propósito de levar todo conhecimento cativo a obediência de Cristo.

    grande abraço.

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    1. Daniel, seu comentário me deixou muito feliz. Obrigado pela gentileza! Abraços arenopolinos!

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  2. http://www.istoe.com.br/reportagens/290269_HISTORIAS+QUE+ASSUSTAM+A+ONU

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  3. Excelênte. Leitura para se aprender e levar pra vida.

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