segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A ÉTICA DO LINCHAMENTO



Sobre a universitária que foi desacatada e agredida por seus colegas da Uniban (Universidade Bandeirante, em São Bernardo), por estar usando um vestido curto demais.

"Impressionante como a maneira de vestir provoca reações extremadas nas pessoas. Por isso, vivo alertando sobre os riscos de não saber fazer a leitura correta do significado das roupas e sair por aí mandando sinais errados que vão ser mal interpretados. A jovem foi ingênua de achar que poderia ignorar os códigos da moda, que se baseiam em adequações: roupa certa para o lugar certo.

"Ela usou roupa de balada na hora errada e foi massacrada por isso. Uma punição completamente desproporcional ao deslize. Ela esqueceu também que indivíduos, covarde e sabidamente, se comportam diferentemente quando estão em bandos, formando multidões. Em lágrimas, a moça relatou: 'fui xingada até por meninas que moram perto da minha casa e que tomam ônibus comigo. Me trataram como se eu fosse um bicho' ".

Glória Kalil, 30-10-2009

Numa entrevista no palco de um programa televisivo, a própria garota declarou que desde o início do ano vinha se vestindo de forma semelhante. Também segundo ela, foi à faculdade de ônibus naquela noite, onde não sofreu nenhum tipo de insinuações ou ultrajes. Suponho, portanto, que ela já era motivo de comentários entre os alunos, os quais, preconceituosamente, já a haviam rotulado, e era questão de tempo para o processo de "linchamento moral" que sofreu.

Engraçado que a moral não é a verdadeira preocupação de jovens universitários. Na verdade, não passa de hipocrisia das mais descaradas, como pretexto para tornar alguém alvo de humilhação em praça pública. A ação revela, antes de tudo, o quão os seres humanos são maus. Algumas das entrevistas na porta da faculdade entre os estudantes evidencia que eles acreditam que fizeram algo que lhes era de direito, algo como "ela mereceu", ou como um dos seguranças disse à moça: "Está feliz com o que você fez?". Ao mesmo tempo, ninguém vê a si mesmo como componente do grupo. Mas não devemos nos surpreender: essa é a ética do linchamento.

Quem nunca viu uma daquelas cenas na televisão, onde um grupo enfurecido destrói uma delegacia pra raptar um dos presos, e o lincha na rua diante das câmeras? Todos sabemos bem que a maioria daquelas pessoas seria incapaz de, solitariamente, desferir um golpe no rosto do criminoso enquanto todos a observam. Contudo, quando se trata de linchamento, nem a câmera da TV os intimida.

Por que? Por algum motivo que talvez a psicologia explique, há uma conceituação diferenciada quanto a "quem" pratica o crime. Na cabeça das pessoas, enquanto fazem parte do grupo, elas perdem sua própria identidade; como se fosse possível alterar sua própria substância para se homogeneizar ao bando, fazendo com que suas atitudes, pelo menos nesse momento, não sejam mais suas, mas do bando.

Francamente, eu não posso conceber essa ética do linchamento. Confesso que muitas vezes já me senti tentado a incitar um apedrejamento de ônibus (como protesto), mas sei que eu não seria capaz de atirar uma pedra sequer. Aliás, mesmo se eu incitasse a outros me sentiria profundamente responsável. Não porque eu seja muito sensível, mas porque eu de fato seria responsável.

Não se trata de sentimento de culpa, mas de culpa propriamente dita. Um linchamento, no final das contas, terá muitos culpados: quem idealizou, quem incitou, quem bateu, quem "uivou"... todos são culpados. A questão é: se todos são culpados, isso diminui a minha culpa? Novamente, na cabeça das pessoas, parece que sim. A prática do linchamento é uma conseqüência extrema da relativização ética: o crime só será condenável quando a prática for exceção; quando o crime é comum na sociedade, como puni-lo?

Conseqüência: é justamente porque pensamos assim, que no Brasil é normal baixar músicas e filmes na internet sem pagar, xerocar um livro inteiro, explorar um empregado, ir pra cama com adolescentes, "molhar" a mão do guarda, furar a fila, sonegar impostos, ou como vimos, desacatar e humilhar uma garota que se veste mal (como se "vestir-se mal" justificasse um comportamento agressivo). Como escreveu Glória Kalil, "uma punição completamente desproporcional ao deslize".

A negação do absoluto conduz à moral da conveniência, dos dois pesos e duas medidas, da Lei de Gerson, e do tão aclamado "jeitinho brasileiro". Essas leis são nossas bandeiras quando nos convém, mas quando somos vitimados por essa ética suja e maltrapilha aparecemos na televisão chorando e clamando por justiça. O brasileiro só quer justiça quando ele é a vítima. A discussão sobre uma sociedade justa e igualitária, humana e respeitadora, sobre uma ética baseada em princípios absolutos... essa sempre pode ficar para amanhã... ou então, quando me for conveniente.
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Citação da Glória Kalil:
http://chic.ig.com.br/materias/517001-517500/517150/517150_1.html

2 comentários:

  1. Conteúdo integral da nota publicada pela Faculdade no último Domingo (08/11):

    "Responsabilidade educacional

    A educação se faz com atitude e não complacência

    A Universidade Bandeirante – UNIBAN BRASIL – dirige-se ao público e, especialmente, à sua comunidade acadêmica para divulgar o resultado da sindicância no campus de São Bernardo do Campo sobre o episódio ocorrido no dia 22 de outubro, fartamente exibido na internet e divulgado pelos veículos de comunicação.

    A sindicância consoante com o Regimento Interno nos termos do artigo 216, parágrafo 5, e do artigo 207, da Constituição Federal, colheu depoimentos de alunos e alunas, professores, funcionários e da estudante envolvida, além de analisar vídeos e imagens divulgadas.

    Os fatos:
    Foi apurado que a aluna tem frequentado as dependências da unidade em trajes inadequados, indicando uma postura incompatível com o ambiente da universidade, e, apesar de alertada, não modificou seu comportamento.

    A sindicância apurou que, no dia da ocorrência dos fatos, a aluna fez um percurso maior que o habitual aumentando sua exposição e ensejando, de forma, explícita, os apelos dos alunos que se manifestavam em relação à sua postura, chegando, inclusive, a posar para fotos.

    Novamente, a aluna optou por um percurso maior ao se dirigir ao toalete, o que alimentou a curiosidade e o interesse de mais alunos e alunas, tendo início, então, uma aglomeração em frente ao local.

    Depoimentos de colegas indicam que, no interior do toalete feminino, a aluna se negou a complementar sua vestimenta para desfazer o clima que havia criado.

    Foi constatado que a atitude provocativa da aluna, no dia 22 de outubro, buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar, o que resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar.

    Em seu depoimento perante a comissão, a aluna demonstrou um comportamento instável, que oscilava entre a euforia e o desinteresse, e estava acompanhada de dois advogados e uma estagiária vinculados a uma rede de televisão.

    Decisão do Conselho Superior da Universidade:
    Diante de todos os fatos apurados pela comissão de sindicância, o Conselho Superior, amparado pelo relatório apresentado e nos termos do Regimento Interno, decidiu, com base no Capítulo IV – Regime Disciplinar, artigos 215 e seguintes:

    1 – Desligar a aluna Geisy Villa Nova Arruda do quadro discente da Instituição, em razão do flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade;

    2 – Suspender das atividades acadêmicas, temporariamente, os alunos envolvidos devidamente identificados no incidente ocorrido no dia 22 de outubro.

    A UNIBAN reafirma o seu compromisso com a responsabilidade social e a promoção dos valores que regem uma instituição de ensino superior, expressando sua posição de apoio aos seus 60 mil alunos injustamente aviltados. Nesse sentido, cabe aqui registrar o estranhamento da UNIBAN diante do comportamento da mídia que, uma vez mais, perde a oportunidade de contribuir para um debate sério e equilibrado sobre temas fundamentais como ética, juventude e universidade.

    Para tanto, convida seus alunos e alunas, professores, funcionários, a comunidade e a mídia para um ciclo de seminários sobre cidadania em data a ser oportunamente informada.

    Universidade Bandeirante – UNIBAN BRASIL"

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  2. É evidente que toda a publicidade negativa em torno do incidente irritou profundamente os alunos e a direção da instituição.

    Como reação, desde a publicação da nota, empresas que tem parcerias de estágio com a UNIBAN têm se manifestado contra a decisão e anunciado seu desligamento da mesma.

    Quanto ao conteúdo do documento, não pude deixar de notar a seguinte incoerência.

    "a atitude provocativa da aluna, no dia 22 de outubro, buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar, o que resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar."

    É notória a interpretação da sindicância de que a manifestação coletiva foi em defesa do ambiente escolar. Se é assim, por que então os alunos participantes identificados também foram punidos? Ora, eles tão-somente reagiram em defesa do ambiente escolar. É incoerência demais para um documento que certamente foi produzido com todo o auxílio jurídico que se fazia necessário.

    A UNIBAN está cavando cada vez mais a própria sepultura. Ainda que o MEC não tome providências, prevejo que o próximo concurso vestibular será um fiasco.

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